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Terapia Ocupacional e Integração Sensorial: ENTREVISTA EXCLUSIVA com Paula Serrano

Foto do escritor: Congresso CEACongresso CEA

PAULA SERRANO, Terapeuta Ocupacional, Formadora e Autora


CEA2025: Dra. Paula, qual é o papel da Terapia Ocupacional no desenvolvimento das crianças autistas e na sua qualidade de vida?


Paula Serrano: O desempenho ocupacional da criança autista é fundamental para o seu desenvolvimento e qualidade de vida, pois envolve a capacidade de participar em atividades diárias essenciais, como brincar, alimentar-se, comunicar- se e realizar tarefas de autocuidado. No entanto, os sintomas da Perturbação do Espetro do Autismo (PEA) podem ter um impacto significativo nessas áreas, exigindo uma intervenção que promova maior independência e bem-estar.


As crianças com autismo frequentemente enfrentam desafios na regulação emocional e sensorial. O que se pode manifestar como dificuldades em lidar com mudanças de rotina, hipersensibilidade a estímulos ou comportamentos repetitivos que servem como mecanismo de regulação. A falta de autorregulação pode ter impacto na aprendizagem e na interação social.


Na área dos autocuidados verificamos que as atividades como vestir-se, escovar os dentes e tomar banho podem ser desafiadoras devido a dificuldades motoras, resistência a determinados estímulos sensoriais ou dificuldades na compreensão de rotinas. Isso pode ter um impacto na independência da criança e exigir suporte contínuo. Por outro lado, muitas crianças com PEA apresentam seletividade alimentar devido a sensibilidades sensoriais, preferências por texturas específicas ou dificuldades motoras orais. Isso pode levar a uma dieta restrita e problemas nutricionais, afetando o crescimento e a saúde.


Quando pensamos no brincar como a ocupação central da criança relacionada com o desenvolvimento e bem-estar, constatamos que as crianças com autismo podem ter dificuldades em interações sociais, imaginação e comunicação simbólica. O brincar pode ser repetitivo ou focado em interesses restritos, dificultando a participação em brincadeiras compartilhadas e a aprendizagem por meio da interação com pares.


É por isso que a intervenção precoce, e a intervenção na terapia ocupacional integrada numa equipa multidisciplinar, vai contribuir para o desenvolvimento da autonomia das referidas ocupações, proporcionando assim, maior autonomia e qualidade de vida para a criança com autismo e sua família. 



CEA2025: A Integração Sensorial é uma área central do seu trabalho. Poderia explicar de forma simples como esta abordagem pode beneficiar as crianças no espetro?


Paula Serrano: A Abordagem de Integração Sensorial de Ayres pode beneficiar crianças com autismo ao ajudá-las a processar e responder melhor aos estímulos 

sensoriais do próprio corpo e do ambiente. A Perturbação do Espetro do Autismo (PEA) envolve normalmente dificuldade em lidar com desafios na regulação sensorial. 


As crianças podem apresentar como hipersensibilidade (respostas exageradas a estímulos como luz, som ou toque) ou hipossensibilidade (baixa resposta a estímulos sensoriais). Para além da reatividade sensorial podemos observar que a capacidade de discriminar e interpretar os estímulos do corpo e ambiente são também um desafio importante para estas crianças, tendo impacto no desenvolvimento da consciência corporal e capacidades motoras e percetivas. Assim, quando a criança beneficia da intervenção com a abordagem de Integração Sensorial de Ayres pode observar-se uma melhoria em diversas áreas. 


Na regulação sensorial a integração sensorial ajuda a criança a regular a reatividade e a processar estímulos sensoriais de maneira mais organizada. E, reduz as reações extremas a sons, texturas ou luzes, promovendo maior conforto no ambiente. Ao conseguir regular as emoções por meio de experiências sensoriais controladas, e de estratégias como brinquedos sensoriais, massagens ou exercícios específicos consegue-se reduzir crises, levando a uma redução da ansiedade e comportamentos desafiadores 


A integração sensorial promove ainda a melhoria na comunicação e Interação Social. Através da diminuição da sobrecarga sensorial, permite que a criança se concentre mais em interações sociais. Reduzindo também comportamentos repetitivos que surgem como resposta a estímulos sensoriais desregulados. 


A integração sensorial ajuda também no desenvolvimento de competências motoras posturais, planeamento motor e organização. O que permite o desenvolvimento da coordenação motora fina (ex.: segurar um lápis) e global (ex.: equilíbrio e locomoção), e do planeamento motor (necessário para usar equipamentos de parque infantil, vestir, etc.). 


Quando a criança beneficia da abordagem de integração sensorial de Ayres podem-se aplicar estratégias em sala de aula para melhorar a experiência educativa através de um ambiente sensorialmente adequado que melhora o foco e a capacidade da criança participar nas atividades educativas. 



CEA2025: Como pode a Terapia Ocupacional impactar diretamente a vida das mães (e dos pais) atípicas, que muitas vezes enfrentam desafios diários no cuidado dos seus filhos?


Paula Serrano: A Terapia Ocupacional quando faz abordagem diretamente à criança vai tratar todos os aspetos anteriormente referidos. A melhoria da autorregulação e participação nas tarefas de autocuidado, brincar e interação social manifestar-se- ão no dia a dia da família como fatores positivos na qualidade de vida de todos. 


Para além da intervenção direta à criança a intervenção da terapia ocupacional com a família vai ter impacto diretamente na vida dos pais, proporcionando suporte prático e emocional diante dos desafios diários no cuidado dos seus filhos. Como anteriormente referido, essas famílias enfrentam dificuldades que podem incluir dificuldades sensoriais intensas, sobrecarga emocional e física, além da necessidade de conciliar múltiplas responsabilidades. 


Os terapeutas ocupacionais podem ajudar as famílias na organização da rotina, no desenvolvimento de estratégias para facilitar o dia a dia e na organização para gerir o stresse. Além disso, oferecem orientações para a adaptação do ambiente domiciliar, tornando-o mais acessível e funcional para as necessidades da criança e da família como um todo. 


Outro impacto significativo é o suporte na regulação emocional e no autocuidado dos pais, promovendo práticas que ajudam a reduzir a sobrecarga e melhoram a qualidade de vida. 


A Terapia Ocupacional também pode atuar no fortalecimento do vínculo entre pais e filhos, fornecendo técnicas de interação e comunicação mais eficazes, alinhadas às necessidades específicas da criança. Ou seja, a terapia ocupacional pode contribuir para o bem-estar e a saúde mental dos pais, permitindo que possam exercer seu papel com mais confiança e qualidade de vida 



CEA2025: Quais são as maiores dificuldades que os terapeutas ocupacionais enfrentam ao trabalhar com crianças autistas e as suas famílias?


Paula Serrano: Os terapeutas ocupacionais que trabalham com crianças autistas e suas famílias enfrentam diversas dificuldades, que podem ser agrupadas em três grandes áreas principais: formação e capacitação, infraestrutura e condições físicas, e desafios familiares e sociais. 


A Perturbação do Espetro do Autismo manifesta-se de forma altamente variável, o que exige dos terapeutas uma formação ampla e contínua para lidar com diferentes níveis de suporte e necessidades. Muitos profissionais sentem que a formação académica básica não é suficiente para abordar todas as complexidades do autismo. 


Existem uma grande diversidade de abordagens terapêuticas, como Integração Sensorial, ABA (Análise do Comportamento Aplicada), TEACCH, entre outras. Muitas vezes, os terapeutas necessitam procurar formações adicionais para se especializar em métodos específicos, o que pode ser caro e demorado. 

Por outro lado, muitos terapeutas trabalham em instituições que não dispõem de salas sensoriais adequadas, materiais terapêuticos ou até mesmo um ambiente que favoreça a autorregulação da criança. A falta de salas com material sensorial adequado, espaços ao ar livre e brinquedos terapêuticos pode comprometer a eficácia das intervenções. 


Quando pensamos nas necessidades sensoriais das crianças, muitos terapeutas enfrentam dificuldades em ter acesso a materiais adaptados às suas necessidades, como por exemplo, baloiços, texturas variadas, fidget toys e etc.. 


Outro aspeto muito referido por muitos terapeutas é a carga horária excessiva. Em alguns contextos, os profissionais precisam atender muitas crianças num curto período, reduzindo a qualidade da intervenção e dificultando a personalização do atendimento.


E por último, gostaria de referir o envolvimento das famílias no processo terapêutico.


Algumas famílias enfrentam dificuldades em dar continuidade ao trabalho terapêutico em casa, seja por falta de informação, sobrecarga emocional ou falta de tempo. A resistência a novas abordagens também pode ser um obstáculo, bem como os custos de terapias particulares ou de recursos especializados, o que limita as possibilidades de um acompanhamento mais intensivo. 


Ou seja, para melhorar a atuação dos terapeutas ocupacionais com crianças com autismo, é essencial investir em formação contínua, melhorar as condições físicas dos locais de atendimento e promover maior apoio e consciencialização das famílias e da sociedade. 


Sem esses avanços, muitos profissionais continuam a enfrentar desafios que têm impacto direto na qualidade da intervenção oferecida às crianças. 



CEA2025: Como professora e formadora, qual é a importância de capacitar novos profissionais para lidar com o autismo de forma eficaz e humanizada?


Paula Serrano: Atuar como professora e formadora na capacitação de profissionais para o atendimento a crianças autistas é, antes de tudo, um compromisso com a construção de uma sociedade mais inclusiva e preparada para acolher a diversidade. 


O aumento significativo do número de diagnósticos de autismo em todo o mundo exige uma resposta educativa e terapêutica adequada, baseada no conhecimento científico e na sensibilidade humana. 


O autismo tem impacto direto no desempenho ocupacional das crianças, interferindo na sua comunicação, interação social e participação nas atividades diárias essenciais para o seu desenvolvimento. Como seres humanos, expressamo-nos e conectamo-nos com o mundo através das ocupações, sejam elas atividades de autocuidado, educação ou lazer.


Entre elas, o brincar ocupa um lugar central: não apenas como um meio de aprendizagem e socialização, mas como um direito humano fundamental, reconhecido pela ONU. Brincar permite que a criança autista experimente o mundo, desenvolva capacidades e encontre prazer na interação com os outros. 


Com 30 anos de experiência, compreendo a responsabilidade de partilhar conhecimento e formar profissionais que saibam intervir de maneira eficaz e humanizada. Mais do que ensinar técnicas e estratégias, é essencial despertar nos formandos a consciência de que cada criança com autismo é única e merece um olhar individualizado. 


Investir na capacitação de novos profissionais significa ampliar o impacto positivo na qualidade de vida dessas crianças e das suas famílias, promovendo um futuro mais acessível e acolhedor para todos. 



CEA2025: A sua experiência como autora de livros sobre desenvolvimento infantil contribui para descomplicar o conhecimento científico. Como vê a importância da disseminação deste conhecimento para pais e educadores?


Paula Serrano: A disseminação do conhecimento científico sobre desenvolvimento infantil é essencial para apoiar pais e educadores em suas práticas diárias. 


No mundo atual, onde há uma quantidade imensa de informação disponível, muitos pais sentem ansiedade e incerteza ao tentar encontrar orientação confiável. A dificuldade em distinguir conteúdos baseados em evidências científicas de informações imprecisas ou simplificadas demais pode levar a decisões pouco fundamentadas, afetando o bem-estar das crianças. 


Como terapeuta ocupacional clínica e autora de livros sobre desenvolvimento infantil, vejo a minha experiência como uma ponte entre o conhecimento científico e a realidade das famílias e dos educadores. É fundamental traduzir conceitos complexos em linguagem acessível, sem perder o rigor e a profundidade necessários. Apenas assim garantimos que o conhecimento não permaneça restrito aos especialistas, mas seja útil e aplicável no dia a dia daqueles que cuidam e educam crianças. 


A ciência do desenvolvimento infantil tem muito a oferecer, desde a compreensão do impacto das interações afetivas até estratégias eficazes para apoiar a aprendizagem e a regulação emocional das crianças. Ao disponibilizarmos esse conhecimento de forma clara, ajudamos a reduzir a ansiedade dos pais, permitindo que tomem decisões mais seguras e informadas. 


Além disso, capacitamos educadores para que possam atuar de maneira mais eficaz e consciente. Portanto, o compromisso com a disseminação de conhecimento de qualidade é uma responsabilidade fundamental, especialmente num cenário em que informações contraditórias ou superficiais circulam amplamente. 


A abordagem científica, quando apresentada de forma acessível e prática, torna-se uma ferramenta poderosa para fortalecer as competências parentais e pedagógicas, promovendo o desenvolvimento saudável das crianças. 



CEA2025: Como podem as escolas colaborar com os terapeutas ocupacionais para garantir um ambiente mais acessível e inclusivo para crianças autistas?


Paula Serrano: As escolas podem colaborar com terapeutas ocupacionais para garantir um ambiente mais acessível e inclusivo para crianças autistas através de várias estratégias que promovem a neuro-diversidade e respeitam a individualidade de cada aluno. 


Em primeiro lugar, gostaria de ressaltar a importância da escola desenvolver esforços para ampliar o desenvolvimento de uma mentalidade de apoio à neuro-diversidade através da sensibilização de professores, funcionários e colegas incentivando a aceitação e valorização das diferenças. Importante também oferecer formação contínua sobre estratégias pedagógicas inclusivas e sobre como responder às necessidades sensoriais e emocionais das crianças autistas. Fomentando assim, uma cultura escolar que encoraje a empatia e a compreensão das diferentes formas de comunicação e interação social. 


Em segundo lugar, é também importante a adaptação do Ambiente Escolar para ajustar o espaço físico da escola, e a criação de áreas de regulação sensorial onde as crianças possam acalmar-se quando necessário. Isso seria possível, por exemplo, oferecendo diferentes tipos de assentos, iluminação ajustável e redução do ruído excessivo para acomodar sensibilidades sensoriais. Bem como, a utilizar de recursos visuais, horários estruturados e rotinas previsíveis para facilitar a compreensão e autonomia dos alunos. 


Em terceiro lugar, gostaria de destacar a importância do apoio personalizado e de estratégias de Intervenção. O papel do contexto educativo no desenvolvimento de planos educacionais individualizados (PEI) que integrem sugestões dos terapeutas ocupacionais para melhor atender às necessidades específicas de cada criança. Por exemplo, promovendo momentos de movimento e pausas sensoriais ao longo do dia para ajudar na regulação emocional e comportamental.


Em quarto lugar, a escola tem um papel fundamental na parceria contínua entre o trabalho que desenvolve, a família e os terapeutas ocupacionais, mantendo um canal aberto de comunicação entre professores, terapeutas e pais para ajustar estratégias conforme necessário. Por exemplo, dando a oportunidades para que terapeutas ocupacionais realizem observações em sala de aula e forneçam feedback prático aos educadores e envolvendo a família no processo educativo, fornecendo orientações sobre como replicar estratégias de suporte em casa. 


Ao implementar essas práticas, as escolas não apenas apoiam crianças autistas no seu desenvolvimento, mas também criam um ambiente que valoriza a diversidade, permitindo que todos os alunos se expressem na sua individualidade e tenham acesso a uma educação verdadeiramente inclusiva. 



CEA2025: O próximo Congresso Europeu do Autismo CEA2025 vai promover debates fundamentais para a evolução das práticas terapêuticas e inclusão. Na sua opinião, qual a importância de eventos como este para a Terapia Ocupacional e para as famílias?


Paula Serrano: Eventos como o Congresso Europeu do Autismo (CEA2025) desempenham um papel fundamental tanto para a Terapia Ocupacional quanto para as famílias, pois criam um espaço de partilha essencial entre aqueles que vivem com o autismo no dia a dia e os profissionais que buscam aprimorar suas práticas. Essa troca de experiências e saberes permite que terapeutas ocupacionais compreendam melhor as reais necessidades das pessoas autistas e suas famílias, ajustando suas abordagens para uma intervenção mais eficaz e humanizada. 


Além disso, eventos desse porte incentivam uma reflexão profunda sobre o percurso já trilhado e as prioridades futuras na inclusão e nas práticas terapêuticas. O diálogo entre diferentes áreas do conhecimento contribui para a atualização de estratégias baseadas em evidências científicas, garantindo que os avanços mais recentes sejam incorporados na intervenção terapêutica. 


Outro aspecto crucial é a construção de parcerias, que fortalece redes de apoio e colaboração entre profissionais, pesquisadores e familiares. Essas conexões possibilitam que o conhecimento vá além do evento, gerando impactos duradouros na formação de terapeutas, na formulação de políticas públicas e na qualidade de vida das pessoas autistas. 


Portanto, congressos como o CEA2025 são indispensáveis para impulsionar mudanças significativas e promover uma sociedade mais inclusiva e acolhedora. 


Biografia

Com uma carreira dedicada ao desenvolvimento infantil e à terapia ocupacional, a Dra. Paula Serrano é terapeuta ocupacional desde 1993, com mestrado em Terapia Ocupacional e especialização em Integração Sensorial pela Escola Superior de Saúde do Alcoitão.


Especialista reconhecida na área, é certificada em Integração Sensorial pela University of Southern California – Department of Occupational Science and Therapy e Western Psychological Services, bem como no tratamento do neurodesenvolvimento (Bobath) pela European Bobath Tutors’ Association.


Desde 2000, atua como formadora certificada em desenvolvimento infantil, ensino especial e integração sensorial. Atualmente, é coordenadora e diretora clínica do Centro de Estimulação para o Desenvolvimento e Aprendizagem «Miúdos & Etc.» e professora adjunta convidada no Mestrado em Terapia Ocupacional na área de especialidade de Integração Sensorial.


Autora de quatro livros, publicou “A Integração Sensorial no Desenvolvimento e Aprendizagem da Criança”“O Desenvolvimento da Autonomia da Criança dos 0 aos 3 anos” e “A Criança e a Motricidade Fina” (coautoria com Cira de Luque), editados pela Papa-Letras e Narcea. Em 2024, lançou a sua mais recente obra “Brincar e Integração Sensorial nos Primeiros Anos”, reforçando o seu compromisso com a promoção do desenvolvimento infantil através do conhecimento científico e da prática terapêutica.


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