
Marisa Seabra é Terapeuta da Fala, Mestre e Autora de Publicações Científicas Internacionais
CEA2025: Dra. Marisa, qual é o papel da Terapia da Fala no desenvolvimento de crianças com Perturbação do Espetro do Autismo (PEA)?
Marisa Seabra: As crianças com Perturbação do Espetro de Autismo frequentemente apresentam dificuldades na comunicação social e na interação social nos seus diferentes contextos, e por isso a Terapia da Fala desempenha um papel essencial no seu desenvolvimento.
Mais especificamente, o terapeuta da fala pode ajudar a criança a desenvolver competências de linguagem expressiva e compreensiva, permitindo-lhe comunicar de forma mais clara e eficaz com os outros. Esta comunicação pode ser feita através da compreensão e expressão da linguagem e/ou uso de comunicação não verbal - como interpretar expressões faciais e corporais e gestos. O processo terapêutico também se foca em adaptar estratégias de comunicação que vão ao encontro das necessidades de cada criança, promovendo a sua participação nos seus diversos contextos.
É também essencial envolver a família, escola e a comunidade em todo o processo terapêutico, fornecendo estratégias para promover a comunicação e a linguagem da criança em todos os contextos relevantes na sua vida.
Uma intervenção atempada pode dar uma melhor qualidade de vida à criança e a quem a rodeia e minimizar dificuldades no seu percurso académico, social e, futuramente, profissional.
CEA2025: Muitas pessoas associam a Terapia da Fala apenas ao desenvolvimento da fala. Que mitos ainda precisam ser desconstruídos sobre esta especialidade?
Marisa Seabra: Ainda é um mito comum procurarem a Terapia da Fala apenas quando a criança apresenta dificuldades ao nível do desenvolvimento dos sons da fala – troca e omissão de sons no discurso, frases desorganizadas e fala muito ininteligível.
No entanto, o terapeuta da fala não trabalha apenas fala, mas também competências comunicativas/ linguísticas, que incluem a compreensão e expressão da linguagem, comunicação não verbal, competências de comunicação, uso de tecnologias de apoio à comunicação - como sistemas alternativos de comunicação.
Também diz respeito ao terapeuta fala intervir em questões de alimentação, deglutição e voz.
Outro mito é a idade em que a criança deve iniciar a terapia da fala. Muitas pessoas pensam que só a partir dos 3/ 4 anos de idade é que uma criança está preparada para uma intervenção terapêutica.
Uma criança pode começar a terapia da fala a partir de qualquer idade, dependendo das suas necessidades. Uma intervenção precoce é muito importante principalmente se estivermos a falar de dificuldades alimentares e/ou de dificuldades na comunicação. A terapia pode ser iniciada ainda nos primeiros anos de vida, por volta dos 12 meses ou até antes. Quanto mais cedo a criança tiver um acompanhamento adequado às suas necessidades, maior será o seu impacto, minimizando dificuldades no seu futuro.
Em casos de bebés ou crianças muito pequenas, os terapeutas da fala podem fazer uma intervenção indireta com os pais e outros cuidadores para ajudar no desenvolvimento da criança, como por exemplo, ao nível da linguagem – orientar os pais com atividades simples que podem fazer em casa, como brincadeiras e interações.
A nossa abordagem é sempre adaptada às necessidades e ao contexto de cada criança e sempre fundamentada nas evidências científicas mais recentes.
CEA2025: Como pode a Terapia da Fala baseada em evidências científicas melhorar a qualidade de vida das crianças autistas e das suas famílias?
Marisa Seabra: A Terapia da Fala baseada em evidências científicas permite utilizar metodologias atuais e fundamentadas, que têm um impacto direto no desenvolvimento das crianças.
Ao centrarem-se nas competências comunicativas adequadas a cada criança com PEA, promove-se a sua autonomia, permitindo-lhes expressar pedidos, necessidades, sentimentos entre outros, melhorando não só as suas interações sociais, mas contribuindo para uma maior intenção comunicativa.
Além disso, facilita o acesso à aprendizagem e a sua participação em todos os contextos em que está inserida. Para todos os contextos, mas essencialmente para as famílias, isto representa menos frustração e um maior entendimento, além de ser possível escolher as melhores estratégias para lidar com as dificuldades de cada criança com PEA no dia a dia.
CEA2025: A ciência tem avançado rapidamente, mas a linguagem científica muitas vezes afasta as famílias do conhecimento. Como podemos tornar a comunicação sobre o autismo mais acessível ao público?
Marisa Seabra: Para tornar a comunicação sobre o autismo mais acessível ao público, é fundamental simplificar a linguagem científica, utilizando uma linguagem clara e objetiva e dando exemplos do dia a dia, sem perder o rigor das informações.
É importante que as informações apresentadas sejam apelativas, com recursos visuais como vídeos, gráficos e histórias que ajudem a ilustrar conceitos complexos.
Organizar eventos, como workshops ou palestras, com uma abordagem mais empática e direcionada, por exemplo às famílias e escolas, também é uma forma utilizada para ajudar toda a comunidade a estar mais informada e saber como pode ajudar/ intervir com crianças com PEA. Um diálogo direto e a personalização das informações às experiências familiares e/ou escolares ajudam a capacitar estas pessoas muitas vezes com estratégias tão simples que podem ser utilizadas.
O uso de plataformas digitais também pode ser uma ferramenta útil para divulgação de comunicação sobre o autismo.
O objetivo principal é envolver as famílias e todos os interessados de maneira prática e significativa, para que possam tomar decisões informadas sobre o desenvolvimento e o apoio às crianças com PEA.
CEA2025: Em relação à intervenção precoce, qual a importância de identificar e trabalhar dificuldades na comunicação desde os primeiros anos?
Marisa Seabra: A intervenção precoce é fundamental, pois quanto mais cedo uma criança começar a receber apoio especializado, maior será o impacto terá no seu desenvolvimento, tornando-o mais equilibrado e funcional. Uma intervenção atempada, melhora a qualidade de vida criança e de quem a rodeia, reduzindo a frustração e comportamentos desafiantes associados às suas dificuldades.
É essencial que a intervenção do terapeuta da fala se foque na promoção e otimização da funcionalidade das competências comunicativas não verbais da criança de forma a promover a descoberta do prazer de comunicar e estar em relação com o outro, para que a linguagem verbal possa emergir e ser usada com o máximo de intenção e funcionalidade possíveis face a natureza tão variável deste quadro clínico. Para isso, se o terapeuta da fala entrar no processo de intervenção antes da oralidade surgir, melhor.
A funcionalidade da comunicação está estreitamente ligada ao desenvolvimento das competências não verbais, que começam a ser adquiridas em idades muito precoces. Desde os primeiros meses, a criança já é capaz de comunicar, compartilhar e envolver o outro nas suas interações. É neste ponto que se encontram as principais dificuldades de comunicação nas pessoas com PEA, especialmente pela falta de uso de competências como o olhar, o apontar, o sorriso e a atenção conjunta. O terapeuta da fala tem um papel crucial em estimular e consolidar o uso destas competências nas crianças com PEA.
Identificar dificuldades na comunicação nos primeiros anos permite que as estratégias terapêuticas sejam implementadas rapidamente, ajudando a criança a desenvolver competências importantes antes que as dificuldades se tornem mais profundas e difíceis de colmatar.
A intervenção precoce também pode prevenir problemas secundários, como dificuldades emocionais e comportamentais.
CEA2025: Para crianças não verbais, a Terapia da Fala pode ajudar mesmo sem desenvolver a fala?
Marisa Seabra: Sim, mesmo para crianças não verbais, a Terapia da Fala é essencial para melhorar a sua qualidade de vida. Nestes casos, a intervenção terapêutica foca-se em formas alternativas de comunicação, como o uso de gestos, expressões faciais, linguagem de sinais ou sistemas de comunicação aumentativa e alternativa (CAA), como o PECS (Picture Exchange Communication System) ou dispositivos eletrónicos com símbolos ou textos.
Paralelamente a isso, também é feito um trabalho ao nível da compreensão da linguagem na promoção de competências de interação social, como a intenção comunicativa, competências de interação, a compreensão e resposta em contextos comunicativos, desenvolvendo sempre estratégias para facilitar a comunicação não verbal e promovendo a inclusão da criança no seu ambiente social e educacional.
É fundamental para crianças com PEA não verbais terem um acompanhamento especializado, uma vez que o terapeuta da fala pode identificar e escolher o meio de comunicação mais adequado a cada uma, tendo em conta as necessidades, as suas competências e o contexto de cada criança. O grande objetivo é dar ferramentas para que a criança consiga ter uma participação comunicativa na sua vida diária.
Uma intervenção personalizada capacita cada criança a comunicar de uma forma mais eficaz e a participar ativamente nos seus diversos contextos, melhorando a qualidade de vida e reduzindo a frustração associada à dificuldade de comunicação.
CEA2025: Como podem as escolas e professores colaborar com os terapeutas da fala para promover uma aprendizagem mais inclusiva?
Marisa Seabra: É muito importante que haja uma comunicação eficaz entre todos os intervenientes no desenvolvimento da criança. Por isso, é essencial existir uma colaboração entre as escolas, os educadores/ professores e outros profissionais que acompanhem a criança com os terapeutas da fala para promover uma aprendizagem mais inclusiva e acessível a todas as crianças com PEA.
Uma das formas de colaboração é a troca de informações entre educadores/ professores e terapeutas, permitindo compreender quais as maiores preocupações e observações sobre o comportamento e progresso das crianças. O trabalho conjunto permite que o terapeuta consiga adaptar a sua intervenção tendo em conta também o contexto escolar e fornecer orientações práticas para o ambiente escolar.
Este envolvimento contribui ainda para a criação de um ambiente sensível a questões como a PEA: a utilização de metodologias inclusivas que favoreçam a comunicação e integração de todos os alunos – como a utilização recursos visuais, gestos ou tecnologias de apoio, sugeridas pelo terapeuta, para facilitar a sua participação.
A formação contínua também é essencial. Os terapeutas podem oferecer formação aos professores, funcionários e colegas sobre como identificar dificuldades de comunicação e aplicar estratégias para apoiar os alunos durante as aulas.
Por fim, o feedback contínuo entre os profissionais permite ajustes constantes nas abordagens de ensino, garantindo que as necessidades de cada aluno sejam atendidas de forma eficaz. Essa colaboração resulta em um ambiente escolar mais inclusivo, favorecendo o desenvolvimento de todos os alunos.
CEA2025: Que mensagem deixaria para os pais que estão a iniciar a jornada do diagnóstico do autismo dos seus filhos?
Marisa Seabra: A minha mensagem para os pais que estão a iniciar a jornada do diagnóstico do autismo é que, embora este seja um caminho cheio de desafios, ele também é repleto de oportunidades para o crescimento e o desenvolvimento da criança. O mais importante é lembrar que há muitos recursos e profissionais prontos para oferecer apoio.
É essencial procurar orientação profissional e confiar na equipa multidisciplinar que acompanhará o seu filho, incluindo os terapeutas da fala, que poderão ajudar a encontrar as melhores estratégias de comunicação para cada criança, seja verbal ou não-verbal. A terapia da fala pode oferecer ferramentas importantes para ajudar o seu filho a expressar suas necessidades e sentimentos, promovendo uma maior integração social.
Também é importante lembrar que cada criança é única e que o autismo é um espectro, o que significa que há muitas formas de viver e experienciar a condição.
CEA2025: No próximo Congresso Europeu do Autismo, renomados especialistas reúnem-se para debater os avanços científicos e as melhores práticas na intervenção para o autismo. Na sua perspetiva, qual a importância de eventos como este para a evolução da Terapia da Fala e para a construção de uma sociedade mais inclusiva?
Marisa Seabra: Eventos como o Congresso Europeu do Autismo são extremamente importantes, pois permitem a presença não só de profissionais e estudantes, mas também das famílias e pessoas com PEA, criando um espaço para a troca de conhecimentos, experiências e avanços científicos entre todos.
Além disso, a presença das famílias nesses eventos é fundamental. Elas desempenham um papel fundamental na defesa dos direitos e no bem-estar de seus filhos e, ao estarem informadas sobre as melhores práticas, podem tomar decisões mais conscientes sobre as metodologias e estratégias a serem adotadas no dia a dia. A troca de experiências entre outras famílias também fortalece o apoio emocional e social, criando uma rede de solidariedade e de compreensão.
Estes eventos ajudam a sensibilizar a sociedade sobre a importância da inclusão, mostrando que, com a intervenção adequada, as pessoas com PEA podem alcançar o seu potencial, promovendo uma sociedade mais justa e acolhedora para todos.
Biografia
A Dra. Marisa Seabra é Terapeuta da Fala na Speechcare Center Lisboa e no Projeto Speechcare Schools. Mestre em Terapia da Fala pela Universidade de Aveiro, possui vasta experiência clínica e escolar no acompanhamento de crianças e adultos em perturbações da comunicação, linguagem, fala, leitura e escrita.
Especializada em Perturbações do Neurodesenvolvimento, Dislexia e Dispraxia Verbal, é certificada na aplicação de métodos de avaliação e intervenção inovadores. Palestrante em eventos científicos, é também autora e coautora de publicações nacionais e internacionais na área da Terapia da Fala.
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