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ENTREVISTA EXCLUSIVA com Dr. Carlos Gadia sobre Mitos e Verdades: Desmistificando o Autismo

Foto do escritor: Kuzola MonaKuzola Mona

ENTREVISTA COM... CARLOS GADIA, Neurologista Pediátrico, Professor e Cientista,

orador e membro da Comissão Científica do CEA 2025



CEA: Dr. Gadia, ao longo da sua trajetória, quais são os mitos mais persistentes sobre o autismo que ainda precisam ser derrubados? E, por outro lado, que verdades precisam de maior reconhecimento pela Sociedade?

Carlos Gadia: Ao longo de uma trajetória de 30 anos, obviamente, enfrentamos uma série de mitos. Por incrível que pareça, em alguns lugares do mundo, inclusive do primeiro mundo, alguns profissionais da área da saúde, ainda acreditam na teoria da “mãe geladeira”. Ou seja, de que a criança se tornou autista pelo fato de ter sido indesejada, e. como ela não foi desejada, então ela não deseja interagir com o mundo. Eu sei que isso parece um absurdo para 99,9% das pessoas que leiam sobre isto, mas por, incrível que pareça, isto ainda é discutido e aceito como algo digno de uma discussão séria, em certas áreas académicas, em alguns países do mundo.

Outro mito que é muito persistente e que, infelizmente, provavelmente, vai ganhar ainda mais importância e mais atenção no futuro próximo é o mito da relação do autismo com vacinas. Existe uma série de interesses por trás desse mito, que não tem absolutamente nada a ver com o autismo. Eu acreditava que, depois do estudo publicado em 2019, no qual todas as crianças nascidas na Dinamarca entre 1999 e 2013 (cerca de 650.000 crianças) foram seguidas por um ano e em que a prevalência de autismo, entre a população vacinada e não-vacinada, não foi estatisticamente diferente, esse mito estivesse acabado (o que mais se poderia fazer do que avaliar toda a população de crianças de um país inteiro ?? !!). Mas certas crenças parecem ter mais força do que a ciência, ainda mais quando se tornam parte de ideologias.

Um outro mito que persiste, ainda, é de que certas dietas (tais como dietas sem glúten e sem lactose) curariam o Autismo ou que exposição a certas classes de alimentos causariam a perturbação. Não existe absolutamente nenhuma evidência de que isso seja verdade. Pelo contrário, isto levou ao surgir de uma indústria de venda de dietas e de suplementos, baseado em pseudociência.


Quanto às verdades que precisam de maior reconhecimento, são aquelas que demonstram (com uma enorme quantidade de evidência) a eficácia de certas intervenções, particularmente de intervenções do tipo de análise aplicada do comportamento, o ABA (Análise do Comportamento Aplicada), e que ainda precisa ser muito reforçada. Até porque existe um número enorme de potenciais intervenções e terapias, sem qualquer suporte científico, sobre as quais costumamos ouvir: “Mas que mal faz tentar de tudo um pouco? Eu costumo dizer que faz um mal enorme nós tentarmos coisas para as quais não existe nenhuma evidência científica, porque isso vai ter um impacto negativo em termos de perda de tempo, de perda de oportunidades, de perda de recursos, e mais importantemente, de perda de esperança (quando tentamos diferentes “opções e elas não funcionam, há uma tendência a pensar que nada funcionará).


CEA: O diagnóstico precoce tem sido um dos principais temas discutidos no campo do

autismo. Que impacto real pode ter na vida das crianças e das suas famílias? Como podemos garantir que mais crianças tenham acesso a uma avaliação e intervenção adequada desde cedo?

Carlos Gadia: Essa é uma pergunta que está a tornar-se cada vez mais importante. À medida que nós evoluirmos da ideia de tratar precocemente o Autismo, para a ideia de identificar os fatores de risco muito precocemente, no primeiro ano de vida se possível, e começarmos com intervenções de qualidade, de tal maneira que crianças que seriam diagnosticadas como autistas por volta dos 3 - 4 anos de idade, não o sejam. Isso é o que nós poderíamos chamar, e tem sido chamado por uma série de investigadores, de a profilaxia do Autismo.

Atualmente, particularmente, tem chamado muita atenção a certificação pelo FDA de uma ferramenta de avaliação chamada EarliPoint, que foi reconhecido pelo FDA (U.S. Food and Drug Administration), depois de um estudo muito bem feito com muitas centenas de crianças, como um sistema diagnóstico de Autismo em crianças entre 16 e 30 meses de idade.

Por muitos e muitos anos tem-se procurado biomarcadores do autismo que permitissem auxiliar no diagnóstico e que fossem além do que os pais e as famílias chamam de “apenas um diagnóstico clínico”. Tem sido uma longa procura, estudando sistemas de neuroimagem, estudos genéticos, avaliações ao sangue de possíveis biomarcadores, estudos eletrofisiológicos, etc.


Finalmente, devido a um trabalho de muitos anos do Dr. Ami Klin e sua equipa, chegou-se a esse primeiro biomarcador, que é a utilização da tecnologia de eye-tracking, combinada com programas que nos permitem comparar esses dados com escalas específicas, que são consideradas padrão-ouro para o diagnóstico de autismo, como o A-DOS-2. Isso vai, sem dúvida, permitir um diagnóstico mais precoce.


Mas, mais importante do que isso, espera-se que vá possibilitar que a longíssima fila de espera para crianças com Autismo que estão a aguardar uma consulta possa diminuir significativamente e permitir intervenções mais precoces.

CEA: Inclusão na educação. Como transformar promessas em ações? Apesar dos avanços na legislação, muitas crianças autistas ainda enfrentam barreiras no acesso a uma educação verdadeiramente inclusiva. O que os sistemas educativos precisam fazer para garantir que o potencial das crianças seja plenamente desenvolvido?

Carlos Gadia: Qualquer projeto de educação de crianças autistas ou, mais

amplamente, de crianças com perturbações do neurodesenvolvimento, começa com uma avaliação da criança e com um Plano Educacional Individualizado (PEI). E a partir deste ponto, uma visão de adaptarmos a escola ao indivíduo, às necessidades daquela pessoa e não termos de adaptar o indivíduo à escola. Assim, poderemos caminhar para sistemas realmente inclusivos de educação. E isso, obviamente, vai exigir, em muitos países, uma mudança da própria ideologia educacional.


CEA: Sabemos que apenas 10% das crianças autistas na União Europeia têm emprego

formal. Quais são as maiores barreiras para a entrada das pessoas no mercado de trabalho? E que medidas as empresas e governos precisam adotar para promover um

ambiente de trabalho verdadeiramente inclusivo?

Carlos Gadia: Acredito que a primeira barreira é a perceção do mercado de trabalho, que é fundamental: a perceção de que alguém com diagnóstico de perturbação do espetro do autismo somente tem déficits, somente tem dificuldades em termos do seu neurodesenvolvimento, quando, na verdade, temos cada vez de focarmo-nos na identificação e no uso das potenciais habilidades desses indivíduos. A partir do momento em que olhamos o indivíduo autista como alguém que tem dificuldades e habilidades, poderemos pensar em como podemos utilizar essas habilidades para incluir esse indivíduo na sociedade, seja na família, na escola, no trabalho.


Claro que eu acho importante que, em alguns países, haja um sistema de cotas que exija que empresas empreguem uma certa percentagem de pessoas com deficiências. Por outro lado, acredito que, em algum momento, deveríamos mudar desse sistema para um sistema em que esses indivíduos sejam empregados pelas suas habilidades, e não somente pelo fato de que precisamos preencher uma cota.

Já existe um número razoável de grandes empresas no mundo que já se deram conta disso, tanto é que muitas dessas empresas têm divisões inteiras, dentro delas, com indivíduos da perturbação do espetro do autismo. Até porque acredito que, há muito tempo já se conseguiu perceber que uma certa percentagem desses indivíduos pensam e criam de uma maneira muito diferente dos neurotípicos e que isso pode, na realidade, gerar novas tecnologias, novos entendimentos que possam ter um impacto muito positivo no desenvolvimento da população mundial como um todo.


CEA: Muitas famílias ainda se sentem isoladas e desamparadas ao receber o diagnóstico de autismo dos seus filhos. Como podem as redes de apoio e a partilha de

experiências transformar essa jornada?


Carlos Gadia: Essa pergunta é de fundamental importância, porque chama a atenção para o fato de que, quando falamos da perturbação do espetro do autismo, não estamos a referir-nos a uma perturbação que envolve uma pessoa isoladamente; estamos a falar de uma perturbação que envolve a família inteira, porque o impacto do diagnóstico, da procura pelo diagnóstico, por intervenções e a aplicação dessas intervenções, etc., é enorme e afeta o dia-a-dia de todas as famílias.

Nesse sentido, desde o início, quando o diagnóstico é feito, temos de pensar em rede de apoio, rede de suporte para as famílias e, especialmente, para as mães. Suporte através de profissionais de saúde, suporte através de grupos organizados de famílias de pessoas com perturbação do espetro do autismo. E, também, suporte a todos os níveis, tanto do ponto de vista de profissionais de educação, como suporte governamental (que é de fundamental importância). Essas redes de apoio, a todos os níveis, estão a começar a transformar a jornada dessas famílias.


CEA: Com avanços científicos, tecnológicos e sociais, como imagina que será a realidade das pessoas autistas nos próximos anos?

Carlos Gadia: Estamos no caminho certo para uma sociedade mais inclusiva. Em relação a avanços científicos, eu acredito que vamos assistir, nos próximos anos, a conclusões do ponto de vista da genética e da neurobiologia da perturbação do espetro do autismo que irão parecer quase ficção-científica. Acho que, de alguma maneira, isso já está a começar a ocorrer com, por exemplo, o uso de um medicamento chamada trofinetide (para aquelas pessoas com síndrome de Rett) e outros medicamentos que estão a surgir e a sair das áreas de estudo para comercialização.

Tenho certeza de que o impacto da genética e do entendimento da neurobiologia dos sistemas neuronais envolvidos na perturbação do espetro do autismo vai avançar muito nos próximos dez anos. E, possivelmente, mudará todo o nosso plano de intervenção, ou pelo menos as nossas ideias de um prognóstico mais positivo para todos.

Acredito que estamos no caminho para uma sociedade mais inclusiva. Mas temos de entender que, muitas vezes, quando falamos de sociedade mais inclusiva, estamos a

referir-nos, basicamente, a países do primeiro mundo (principalmente do Ocidente) ou de alguns outros países nos quais uma minoria muito pequena de pessoas tem acesso, a níveis elevados de informação e tem recursos que permitam as intervenções necessárias.

O que devemos fazer para conseguir uma sociedade mais inclusiva, na realidade, é

começar a fazer com que as informações que nós temos agora, as intervenções, os entendimentos a respeito de diagnóstico, terapias, inclusão familiar, escolar e no trabalho, que todo esse conhecimento possa ser estendido ao mundo, como um todo (em todos os continentes, em países com diferentes níveis socioeconómicos, diferentes conceitos de cultura, etc.).


CEA: Uma mensagem inspiradora é um chamado à ação.

Carlos Gadia: A minha mensagem é dirigida a diferentes grupos. Vou começar para o grupo daqueles jovens que estão a pensar em iniciar uma formação em profissões relacionadas com a saúde (sejam médicos, psicólogos, psicopedagogos, musicoterapeutas, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, terapeutas comportamentais, etc.). enfim, fisioterapeutas, todos os tipos de.


A minha primeira chamada é para aquele grupo de jovens que está a começar essa

caminhada na área da medicina, por si só muito extensa. Eu gostaria de chamá-los

para que olhem o campo da neuropsiquiatria, principalmente a neurologia e a

psiquiatria infantil e principalmente, transtornos do neurodesenvolvimento, como uma

área de excelência para estudos; uma área que vai, muito provavelmente, ter um

impacto enorme no entendimento do ser humano e que, talvez, seja uma área onde

nós possamos atingir objetivos quase impensáveis há poucos anos.


De um ponto de vista mais amplo, envolvendo as muitas profissões relacionadas com

a saúde, Para todos que estão a pensar o que fazer dentro da ciência da saúde, eu

diria que, não só existe uma necessidade enorme de profissionais nessa área mas que,

em segundo lugar, essas pessoas que estão a começar agora, irão não só encontrar

uma oferta de trabalho enorme, mas irão conseguir atingir um nível de satisfação

pessoal muito grande pelos efeitos positivos que levarão a uma população muito

necessitada.


Em relação a outras áreas da sociedade, obviamente, eu gostaria de fazer uma

chamada à ação para os governos. Nós temos de entender que a perturbação do

espetro do autismo é uma emergência de saúde pública a nível mundial. Estamos a

lidar com uma perturbação que afeta, pelo menos, mais de 1% da população, que

precisa ser visto e ser enfrentado nesse nível. Tanto do ponto de vista do

entendimento, da alocação de recursos para o seu estudo e para intervenções

terapêuticas, de criarmos ambientes que sejam propícios à integração desses

indivíduos, como do educacional e profissional.


Por fim, não preciso fazer uma chamada à ação, mas somente chamar a atenção do

enorme papel que as organizações não-governamentais, principalmente de pais e

famílias de autistas, têm tido nesses últimos 30 anos. Sempre na linha de frente da luta

pelo entendimento, por mais estudo, por mais investigação científica, por mais

aplicação de recursos dos governos e pelos direitos desses indivíduos.

Biografia

Médico, Especialista em Autismo e Referência Internacional

Carlos Gadia, hoje uma referência internacional em autismo, iniciou a sua carreira na medicina com foco em neurologia pediátrica e epilepsia. Formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, foi para os Estados Unidos, onde se especializou em epilepsia infantil no Boston Children's Hospital.

Nos anos 2000, o seu interesse pelo autismo despertou ao trabalhar com o pediatra Roberto Tuchman, um dos principais investigadores na área. No Centro Dan Marino, um centro de referência em autismo, Gadia encontrou inspiração ao ver famílias trocando experiências e formando uma comunidade de apoio.

Em 2010, Gadia ajudou a fundar o Autismo e Realidade, uma ONG voltada para a

consciencialização e inclusão de pessoas com autismo no Brasil. Posteriormente, em 2016, lançou a Tismoo, uma startup pioneira em medicina personalizada para autismo e doenças neurogenéticas, dedicada ao mapeamento genético e à tradução de estudos científicos para médicos e famílias. Além das suas atividades como ativista, é ainda professor em universidades na Flórida, EUA, e continua a atender crianças com autismo, tendo

já tratado mais de 9,1 mil crianças.


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